Cotas: solução ou problema?
No dia 29 de junho, um grupo de 114 intelectuais foi ao Congresso Nacional pedir a rejeição de dois projetos de lei: o que criaria o Estatuto da Igualdade Racial e o que pretende instituir um sistema de cotas que determina a reserva de vagas para negros e índios nas universidades públicas federais. Segundo esse grupo, são propostas que podem incentivar o racismo no Brasil.
O ato, divulgado por diversos veículos da grande imprensa, põe lenha numa fogueira que está longe de ter unanimidade. Muitos acadêmicos e integrantes de movimentos sociais e do movimento negro defendem as cotas como um instrumento emergencial de diminuição da desigualdade entre brancos e não-brancos. Reconhecem que a igualdade de fato só acontecerá com mudanças culturais e em longo prazo, mas defendem as cotas como instrumento temporário para mudar circunstancialmente algumas realidades em que a desigualdade é marcante.
Por outro lado, um número cada vez maior de intelectuais e de integrantes do próprio movimento negro enxerga nas cotas uma forma de continuar definindo a relação entre negros, índios e brancos pela diferença, não pela igualdade. Foram estes que, no dia 29 de junho, entregaram a carta pública contra o Estatuto e a lei de cotas aos presidentes da Câmara, Aldo Rebelo, e do Senado, Renan Calheiros. Diz a carta: “políticas dirigidas a grupos raciais (...) não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário”. O manifesto diz ainda que ninguém deve ser discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida íntima e sua religião.
Em resposta, um grupo de cerca de 50 pessoas tornou público, no dia seguinte, um outro manifesto – a favor dos dois projetos. O texto lembra que “a desigualdade racial vigente hoje no Brasil tem fortes raízes históricas e esta realidade não será alterada significativamente sem a aplicação de políticas públicas dirigidas a este objetivo”. O documento defende as cotas, afirmando que, segundo as experiências já existentes, a prática "tem contribuído para combater o clima de impunidade diante da discriminação racial no meio universitário”.
A exemplo do que o primeiro grupo - o que rejeita as cotas - fez, esse segundo manifesto, em defesa da lei das cotas e do Estatuto, foi entregue na última terça-feira, também aos presidentes da Câmara e do Senado, com a assinatura de 425 intelectuais e militantes de movimentos negros e de 157 estudantes, mestrandos e profissionais liberais.
O projeto que institui cotas nas universidades federais já foi aprovado em comissão especial da Câmara e aguarda votação em plenário. Depois disso, se aprovado, segue para o Senado. O Estatuto da Igualdade Racial já foi aprovado no Senado e está esperando análise na Câmara.
Racismo nas universidades
A discussão sobre cotas no Brasil ganhou fôlego com a implementação das cotas para pobres, negros, indígenas e pessoas com necessidades especiais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 2002. “No início também fui contrário, mas parei, estudei os argumentos pró e contra e hoje sou totalmente favorável e um defensor incansável das cotas”, conta Frei David, coordenador da ONG Educafro, que coordena mais de 200 cursos pré-vestibulares para negors e carentes. Ele ressalta que o baixo índice de ingresso de negros é a principal demonstração da exclusão racial no ensino superior. “Órgãos como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) já destacaram a diferença entre brancos e negros no ensino superior”, aponta.
Yvonne Maggie, professora de antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), discorda que o racismo no ensino superior se manifeste de forma destacada e acredita que é a classe social que faz com que os pobres sejam discriminados. A cor, para ela, é apenas um dos fatores associados à pobreza. “A universidade pública tem poucos pobres. É aí que está o problema. Para que este quadro se modifique é preciso ampliar as vagas, contratar mais professores e fazer com que os professores universitários se responsabilizem pela formação de muito mais jovens do que fazem atualmente”, diz.
Para Maggie, outro problema verificado nesse sistema é a exclusão de estudantes negros provenientes de escolas particulares. “Os estudantes negros que fizeram seus estudos em escolas particulares, porque as famílias lutaram para dar um bom estudo a seus filhos, foram excluídos da universidade. Nenhum estudante negro de escola particular entrou no curso de Medicina em 2005 por força das cotas raciais associadas às cotas de escolas públicas, mesmo tirando melhores notas do que os seus colegas de escolas públicas. Assim, o sistema de cotas que se implanta, ao tentar solucionar uma questão pela invenção de uma estratégia racializada, acaba produzindo injustiças impensáveis”, enfatiza.
Frei David critica as justificativas dos intelectuais que são contra as cotas: “O único argumento dos que assinam contra as cotas é de que as políticas universais são suficientes. Defender políticas universais é um ponto de vista de quem está numa situação confortável, insensível com a gritante exclusão do povo negro. O Ipea constatou que, desde 1929, as políticas públicas universais em nada mudaram a desigualdade entre brancos e negros na educação. Não queremos perpetuar as desigualdades. Investir em ações afirmativas agora não significa abandonar a melhoria do ensino fundamental e médio”, enfatiza.
Nos últimos quatro anos, mais de 35 universidades e instituições de ensino superior públicas, entre federais e estaduais, já implementaram cotas para estudantes negros, indígenas e alunos da rede pública nos seus vestibulares. Essas experiências, destaca Frei David, têm confirmado o bom desempenho dos cotistas, o que desmonta um preconceito muito difundido de que as cotas conduziriam a um rebaixamento da qualidade acadêmica das universidades.
Outro temor daqueles que são contrários à proposta é o possível aumento da hostilidade contra os negros. Frei David acredita que essa medida não vai acirrar o racismo. “Ao contrário, nas universidades com cotas a questão da discriminação racial está sendo tratada com mais tranqüilidade, uma vez que houve preparação para o assunto e aprofundamento”, diz.
Igualdade ou divisão?
A historiadora Wania Sant´Anna ressalta que a questão não é ser a favor das cotas pura e simplesmente, mas de políticas de ação afirmativa para a população afro-descendente, grupo que historicamente tem sido discriminado no Brasil. “É por isso que o Estatuto da Igualdade Racial entrou na história. Deve haver políticas de ação afirmativa, pois esse grupo está sub-representado no país”, diz.
Em recente artigo para a Rets, Wania Sant´Anna destacou que o Estatuto da Igualdade Racial busca aprimorar as políticas públicas e instituir políticas de ação afirmativa como uma estratégia de superação da discriminação racial. “O Estatuto prima por criar um ambiente institucional – nos âmbitos público e privado – de igualdade de oportunidades que reconheça a legitimidade de iniciativas reparatórias para corrigir distorções e desigualdades derivadas da escravidão durante o processo de formação social do Brasil.” Ela lembra também que o Estatuto da Igualdade Racial está “em total consonância com os melhores e mais defensáveis postulados e tratados de direitos humanos aprovados no âmbito internacional e dos quais o Brasil é signatário”.
Entre esses documentos figura a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que prevê a possibilidade de instituição de “medidas especiais tomadas com o objetivo precípuo de assegurar, de forma conveniente, o progresso de certos grupos sociais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção para poderem gozar e exercitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em igualdade de condições”. Essas medidas, prossegue o texto da convenção, não serão consideradas "de discriminação racial, desde que não conduzam à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido atingidos os seus objetivos”.
Mesmo com respaldo internacional, a lei de cotas tem enfrentado a resistência até mesmo de alguns militantes do movimento negro. "Tem que ter uma ‘cota’ para todos e reparação para a maioria do povo: serviços públicos universais e de qualidade e empregos. É isso que pode mudar a situação do povo pobre e negro deste país”, defende José Carlos Miranda, do Movimento Negro Socialista (MNS).
Miranda conta que militantes socialistas e negros, como ele, começaram a se articular e discutir as questões das cotas e do Estatuto e concluíram “que se tratam de políticas que no fundo são racistas e podem iniciar uma divisão na classe trabalhadora e entre todos os oprimidos”. Foi a partir dessa constatação que se formou o Comitê por um Movimento Negro Socialista. “Nós não aceitamos uma política que pode dividir o povo explorado, porque sabemos, e a história já demonstrou, que só com unidade e organização poderemos conquistar vitórias”, diz.
Wania Sant’Anna discorda da visão de que as ações afirmativas estejam dividindo o país. “Estamos querendo, na verdade, unir o país, que já está dividido. Igualdade é dar oportunidades a determinados grupos que são historicamente discriminados. É construção, uma batalha”, reforça.
Mariana Loiolahttp://arruda.rits.org.br/notitia1/servlet/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeSecao?codigoDaSecao=3&dataDoJornal=atual